By: INTERVALO DA NOTICIAS
Texto: TERRA – Imagem: Divulgação
"Quando li a reportagem sobre a ação que pede a liberação do aborto em
caso de microcefalia no Supremo Tribunal Federal (STF), levei para o
lado pessoal. Me senti ofendida. Me senti atacada.
No dia em que nasci, o médico falou que eu não teria nenhuma chance de
sobreviver. Tenho microcefalia, meu crânio é menor que a média. O doutor
falou: 'ela não vai andar, não vai falar e, com o tempo, entrará em um
estado vegetativo até morrer'.
Ele - como muita gente hoje - estava errado.
Meu pai conta que comecei a andar de repente. Com um aninho, vi um
cachorro passando e levantei para ir atrás dele. Cresci, fui à escola,
me formei e entrei na universidade. Hoje eu sou jornalista e escrevo em
um blog.
Escolhi este curso para dar voz a pessoas que, como eu, não se sentem
representadas. Queria ser uma porta-voz da microcefalia e, como projeto
final de curso, escrevi um livro sobre minha vida e a de outras 5
pessoas com esta síndrome (microcefalia não é doença, tá? É síndrome!).
Com a explosão de casos no Brasil, a necessidade de informação é ainda
mais importante e tem muita gente precisando superar preconceitos e se
informar mais. O ministro da Saúde, por exemplo. Ele disse que o Brasil
terá uma 'geração de sequelados' por causa da microcefalia.
Se estivesse na frente dele, eu diria: 'Meu filho, mais sequelada que a sua frase não dá para ser, não'.
Porque a microcefalia é uma caixinha de surpresas. Pode haver problemas
mais sérios, ou não. Acho que quem opta pelo aborto não dá nem chance
de a criança vingar e sobreviver, como aconteceu comigo e com tanta
gente que trabalha, estuda, faz coisas normais - e tem microcefalia.
As mães dessas pessoas não optaram pelo aborto. É por isso que nós existimos.
Não é fácil, claro. Tudo na nossa casa foi uma batalha. Somos uma
família humilde, meu pai é técnico de laboratório e estava desempregado
quando nasci. Minha mãe, assistente de enfermagem, trabalhava num
hospital, e graças a isso nós tínhamos plano de saúde.
A gente corta custos, economiza, não gasta com bobeira. Nossa casa teve
que esperar para ser terminada: uma parte foi levantada com terra da
rua para economizar e até hoje tem lugares onde não dá para pregar um
quadro, porque a parede desmancha.
O plano cobriu algumas coisas, como o parto, mas outros exames não eram
cobertos e eram muito caros. A família inteira se reuniu – tio, tia,
gente de um lado e do outro, e cada um deu o que podia para conseguir o
dinheiro e custear testes e cirurgias.
No total, foram cinco operações. A primeira com nove dias de vida, para
correção da face, porque eu tinha um afundamento e por causa dele não
respirava.
Durante toda a infância também tive convulsões. É algo que todo
portador de microcefalia vai ter - mas, calma, tem remédios que
controlam. Eu tomava Gardenal e Tegretol até os 12 anos - depois nunca
mais precisei (e hoje sei até tocar violino!).
Depois da raiva, lendo a reportagem com mais calma, vi que o projeto
que vai ao Supremo não se resume ao aborto. Eles querem que o governo
erradique o mosquito, dê mais condições para as mães que têm filhos como
eu e que tenha uma política sexual mais ampla - desde distribuição de
camisinhas até o aborto.
Isso me acalmou. Eu acredito que o aborto sozinho resolveria só
paliativamente o problema e sei que o mais importante é tratamento:
acompanhamento psicológico, fisioterapia e neurologia. Tudo desde o
nascimento.
Também sei que a microcefalia pode trazer consequências mais graves do
que as que eu tive e sei que nem todo mundo vai ter a vida que eu tenho.
Então, o que recomendo às mães que estão vivendo esse momento é calma.
Não se desespere, microcefalia é um nome feio, mas não é esse bicho de
sete cabeças, não.
Façam o pré-natal direitinho e procurem sobretudo um neurologista, de
preferência antes de o bebê nascer. Procurem conhecer outras mães e
crianças com microcefalia. No próprio Facebook há dois grupos de mães
que têm um, dois, até três filhos assim e trabalham todos os dias
tranquilas, sem dificuldade.
Caso o projeto de aborto seja aprovado, mas houver em paralelo
assistência para a mãe e garantia de direitos depois de nascer, tenho
certeza que a segunda opção vai vencer.
Se ainda assim houver pais que preferirem abortar, não posso
interferir. Acho que a escolha é deles. Só não dá para fazê-la sem o
mais importante: informação.
Quanto mais, melhor. Sempre. É o que me levou ao jornalismo, a
conseguir este espaço na BBC e a ser tudo o que eu sou hoje: uma mulher
plena e feliz.
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