By: INTERVALO DA NOTICIAS
Texto: G1 – Imagem: BBC Brasil
"Mãe, mãe, quer ler comigo? É uma historinha. E tem figuras".
"Desmaiada" em uma rede após horas garimpando lixo na rua, para vender,
foi assim - aos sussurros de Damião Sandriano de Andrade Regio, 11, o
mais novo dos sete filhos - que Sandra Maria de Andrade, 42, começou a
decifrar as letras do alfabeto e a despertar para o mundo da leitura.
Até um ano atrás, não sabia ler nem escrever. Em uma casa encravada
numa rua de areia em Jardim Progresso, periferia de Natal, no Rio Grande
do Norte, ela era o retrato dos 758 milhões de adultos no mundo
apontados em um estudo da Organização das Nações Unidas para a Educação,
a Ciência e a Cultura (Unesco), na semana passada, como incapazes de
ler ou escrever uma simples frase.
Sandra não sabia fazer nem o próprio nome. "Espiava" quem visse lendo
um livro e pensava "ah, se eu soubesse também. Se tivesse uma coisa que
eu pudesse roubar, queria que fosse um pouquinho daquela leitura". Ela
tentou estudar, mas não pôde.
Foi forçada a trabalhar desde cedo. Abandonada pela mãe aos três anos,
diz que a avó, com quem passou a morar, lhe entregou a um casal que a
impediu de ir à escola. Ela teve de trabalhar na lavoura, em casas de
farinha (locais em que mandioca é ralada ou triturada) e fazendo faxina.
Em um dia, quando ajudava no cultivo de bananeiras, viu crianças
passando na porta com cadernos debaixo do braço. "Queria ir para onde
iam, mas diziam: vá trabalhar. E eu chorava". Aos 12 anos, na tentativa
de reencontrar a mãe, fugiu. Foi rejeitada. Passou a viver nas ruas e a
comer o que achava no lixo.
Um homem lhe ofereceu casa e comida quando tinha 13 anos. Viveram como
marido e mulher, tiveram três filhos e uma história que, para Sandra,
significou "levar tanta porrada", a ponto de achar que estava morta. Em
12 de junho de 1996, na frente dos filhos, foi golpeada várias vezes com
uma faca, teve parte dos cabelos arrancados com os dentes e, já se
sentindo dormente depois de tanta dor, chegou a dizer a uma das
crianças: "Com fé em Deus, se sua mãe escapar macho nenhum bate mais
nela". No dia seguinte, fugiu levando os três filhos.
"Me perguntavam na rua se eu tinha sido atropelada e mandavam eu dar
parte dele. Mas eu não tinha instrução, não tinha ninguém pra me apoiar.
Meu negócio era sair dali". A ideia de Sandra era "enfrentar o mundo".
A vida sem ler
Mas o mundo, quando tinha letras estampadas, "era como uma folha em
branco" que dificultava até a hora de pegar um ônibus. Em busca de
ajuda, ela precisava confidenciar a quem cruzasse o seu caminho: "Eu não
sei ler". E pedia: "Você pode ler pra mim?".
Mas, sofrimento maior foi, anos depois, fazer a carteira de identidade e
ter de estampar no documento a impressão digital em vez da assinatura.
Fruto de um segundo casamento e com aproximadamente três anos de idade,
Damião, ouvindo a mãe mensurar o tamanho da vergonha, "muito grande",
fez um pacto com ela naquele dia: "Eu vou aprender e, quando aprender,
vou ensinar à senhora".
A mãe já catava lixo para vender à reciclagem e a outros compradores
que batem à porta. A essa altura, não sabia o que era carteira assinada,
estava separada do segundo marido e carregava a tristeza de ter
enterrado quatro dos sete filhos - todos ainda na infância, vítimas de
doenças que acha difícil explicar, e uma das filhas após um
atropelamento.
Ver Damião ir e voltar da escola era um dos momentos de alegria. Cada
dia que o filho chegava, contava a ela, "já morta de cansaço", tudo o
que havia lido e aprendido. Ela se orgulhava: "Ele vai ser o que eu
queria ser".
Damião também tinha o estímulo da professora. Ela dava aulas de reforço
e o incentivava a pegar livros na escola. "Foi com esses livrinhos que
tudo foi se desenganchando" para Sandra. "Eu tomava banho, deitava na
rede, ele vinha e me chamava pra ler. Eu queria ver os desenhos, mas
também queria aprender as letras. Ficava curiosa".
O mais próximo que ela havia chegado da escola foi em uma turma de
jovens e adultos em que aprendeu o "ABC", mas que acabou abandonando por
não parar de ter dúvidas e travar sempre que chegava no "e", letra que
traduz como "uma agonia de vida". Ela ficava "apavorada" por não saber.
"Sentia revolta".
Damião desvendou o "e" para a mãe explicando que era o mesmo que um
"i", só que fechado e sem o ponto. O "h" virou uma cadeirinha" e o R o
mesmo que um B, só que "aberto". Ele começou a ensinar as letras do nome
dele e as letras do nome dela. Até Sandra aprender a escrever.
"Quando eu aprendi, disse: vou fazer outra identidade que é pra quando
chegar nos cantos eu dizer: eu sei fazer meu nome. Pra mim, já era tudo
eu saber. Chegar lá, o povo dizer assine aqui e eu dizer: agora eu já
sei, não sinto mais vergonha".
Escrever o próprio nome foi uma conquista. A palavra "mãe" também. Em
uma reunião da escola, "morreu de felicidade" ao assinar a primeira vez
como responsável da criança. "Tinha que escrever o que eu era dele. Eu
escrevi mãe, caprichado, bem grande".
Damião, devotado à mãe, quer ir além. "Eu quero ver ela aprendendo
comigo. Quero que aprenda as palavras que ela sente aqui dentro. Ela
gosta de falar amor, paixão. Já sabe um monte de palavras. Ela sabe as
mais simples".
Leitura
Mãe e filho leram, juntos, 107 livros em 2016, se considerados apenas
os contabilizados na escola. A lista, porém, fica maior se incluir
outros títulos que Sandra encontrou no lixo. O preferido dela, faz
questão de dizer, "é Ninguém nasce genial". "Escrevi meu nome nele.
Porque ninguém nasce gênio. Porque eu achava que não precisava mais
saber, achava que era tarde pra saber".
Para Damião, outro livro foi mais impactante. Tratava da história de um
anjo que vivia acorrentado e só conseguiu se libertar quando ensinou um
ser humano a rezar e os dois viraram amigos.
"É tipo eu e minha mãe. Eu estou ensinando uma coisa a ela e ela me
ensina outra. Eu era novinho, ela me cuidava, eu cuidava dela. Ela dava
um abraço em mim eu dava dois. Foi assim que nós começamos a nos amar".
O menino também leu sobre aventuras, amizade, paixão e amor ao próximo.
Nesses momentos, diz que "vai pra outro mundo". Que fica com "uma imaginação infinita".
"Eu quero que a leitura me leve pra qualquer canto", diz. Neste ano, irá para o 6º ano na escola.
Na casa onde divide cada palavra que aprende com a mãe, a ajudou a
escrever, na parede da frente, uma mensagem em letras verdes,
maiúsculas: CANTINHO DA FELICIDADE ONDE HÁ DEUS NADA FALTARÁ".
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