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INTERVALO DA NOTICIAS
Texto: G1 – Imagem: DivulgaçãoO café cheirava a papel queimado. A comida, a alimento estragado. E o
pão quentinho não tinha cheiro. De maio de 2020 a janeiro de 2022, o
olfato do vendedor Marcelo Fernandes dos Santos, de 44 anos, distorcia
aromas, inibia o apetite e perturbava momentos em família. Tinha sido
afetado pela Covid-19.
Ele foi um dos 62 paulistanos que, em 2022, participaram de uma pesquisa
de treino olfativo personalizado da naturóloga e especialista em
neurociências Vanessa Castello Branco Pereira, uma mestranda do Programa
de Pós-Graduação do Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo (USP), na área de Psicologia Experimental — Sensação, Percepção e
Cognição, sob orientação da professora Mirella Gualtieri.
A técnica experimental foi aplicada durante três meses em pacientes que
tinham perdido o olfato havia ao menos 13 meses.
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🔵33 dos participantes ficaram no grupo de tratamento experimental e
usaram, em 90 dias, quatro kits com quatro diferentes aromas, de um
total de 44.
🟢29 dos participantes ficaram no grupo de
controle/tratamento tradicional e utilizaram apenas aromas clássicos:
cravo, rosa, limão e eucalipto.
Marcelo é morador de Itaquera, na Zona Leste de São Paulo, e se deu
conta do primeiro sintoma de Covid em maio de 2020, quando usou um
produto para passar pano na casa e não sentiu nada. Naquela época, a
filha dele já estava isolada em uma parte da casa.
Dias depois, a esposa teve o comprometimento de 75% das funções
pulmonares e precisou ser internada por seis dias em um hospital de
campanha do Pacaembu, na Zona Oeste, com ajuda de oxigênio. Todos em casa se recuperaram sem sequelas, exceto Marcelo.
Durante três meses, as refeições dele "não tinham aroma". O pior veio
em seguida, segundo ele, quando teve a distorção dos cheiros. Enquanto a
esposa cozinhava, o vendedor ficava em outro cômodo. O cheiro era de
“coisa podre”, detalha. A fase foi “uma luta entre corpo e mente”.
A esposa tentou ajudar o marido, fez pesquisas na internet e achou
pessoas na mesma situação. A família até tentou fazer testes com
fragrâncias de eucalipto e de lavanda para ele cheirar e tentar treinar o
olfato.
“Fiquei assustado, com dúvida, porque aquilo poderia até trazer mais
problema. Fui em um especialista, e ele me passou vários antialérgicos,
tomei aquilo tudo, mas não teve eficácia”, lembra.
Marcelo então entrou em contato com a USP, na época, que procurava voluntários para a pesquisa desde 2021, e foi aceito.
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No caso do Marcelo, ele citou na entrevista para o tratamento que
gostava do cheiro de laranja. Lembrava quando o pai, hoje com 74 anos,
descascava a fruta na infância. Outro aroma em um dos kits dele era o do
pãozinho, que recordava quando, na manhã de domingo, ia buscar na
padaria com primos.
Ele ficou por 30 dias com os primeiros potinhos e os cheirava três vezes
por dia: pela manhã, à tarde e à noite. Foram revezados quatro kits com
quatro potes cada um, em 120 dias. No primeiro mês, os resultados começaram a aparecer. Em cerca de três meses, 70% do olfato tinha voltado.
A ideia da pesquisa sobre o treinamento olfativo surgiu em 2019, quando
Vanessa teve contato com uma paciente de 92 anos que apresentava um
quadro de perda de olfato persistente e sem diagnóstico havia dois anos.
A queixa da idosa era que não conseguia mais comer geleias de frutas.
Sem o olfato, estava perdendo a memória da mãe. Ela dizia que "parecia
que a memória da mãe deixava de ser vívida sem o aroma da geleia”,
conta.
A pesquisadora então testou a hipótese de que a
modificação do tratamento padrão de reabilitação poderia ter melhores
resultados se usassem aromas de agradabilidade e atrelados às memórias
afetivas de cada pessoa.
“O tratamento mais indicado é o treinamento olfativo [tradicional], mas
ele não leva em conta questões genéticas, nem culturais, nem
individuais de apreciação a odores. Isso faz muita diferença porque,
dentro da organização dos receptores olfatórios, cada pessoa vai ter um
arranjo diferente por conta da genética."
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Com isso, a proposta foi fazer a reabilitação do olfato baseada na história da pessoa.
“É uma forma de a gente estimular essas sinapses [transmissões de
sinais entre neurônios] e esses caminhos neurais que foram defasados
depois de um distúrbio de tanto tempo. A gente teve resultados bem
positivos e significativos e que demonstram que, sim, quando a gente
utiliza aromas da nossa vida, dessa memória afetiva e com
agradabilidade, a gente pode recuperar em um tempo menor as funções do
olfato", explica.
A pesquisa em números
Para a apuração, foi feita uma “escala visual analógica” de 0 a 10, em
um tipo de régua. Na ponta do lado direito estava a escala para o “o
melhor cheiro que eu já senti na minha vida” e, no lado oposto, “o pior
cheiro que eu já senti na minha vida”. Todos os 62 pacientes fizeram a
avaliação dos 44 odorantes.
Em dados gerais, entre homens e mulheres, a média de idade foi de 36,5
anos. Dessas 44 substâncias odorantes, as três com maiores notas foram:
- 🥇O cheiro de chocolate teve no 8,48;
- 🥈Em segundo lugar foi o pão, com uma nota média de 8,44;
- 🥉Em terceiro lugar, foi o cheiro de campo/"natureza verde", com uma nota de 8,39.
Levando-se em conta apenas as mulheres, com 44 voluntárias e uma média
de 35,5 anos, os três cheiros que elas consideraram mais agradáveis
foram:
- 🥇 Chocolate, com a pontuação média de pontuação 8,71;
- 🥈Café, com 8,5;
- 🥉Pão, com 8,46.
Já o grupo de 18 homens, com média de idade de 37,5 anos, as três notas com melhores pontuações foram:
- 🥇Campo/"natureza verde", com nota 8,7;
- 🥈Empate entre pizza e de pão, com nota média de 8,38;
- 🥉Churrasco, com 8,32.
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“Ao longo dessa avaliação, as pessoas poderiam trazer um relato. E com
relação ao pão [aroma entre os mais votados nos dois grupos], o relato
trazia 'o chegar em casa com o pão fresquinho', ou 'passar na frente da
padaria', 'o pão quentinho pela manhã', tudo muito relacionado a um
prazer mais familiar”, conta Vanessa.
A pesquisadora aponta que o grupo que passou pelo método tradicional
teve mais desistência dos pacientes ao longo do tratamento, e o
experimental apresentou mais adesão e engajamento.
30 dias
↘️No grupo do tratamento tradicional, nos primeiros 30 dias, 17% dos participantes desistiram do tratamento;
↗️ Já no grupo experimental, 6% das pessoas desistiram.
60 dias
↘️Depois de 60 dias de tratamento, 17%, dos que restaram no grupo de tratamento tradicional desistiram;
↘️Também 17% desistiram do tratamento no grupo experimental após 60 dias.
90 dias
↗️A taxa de desistência no grupo tradicional caiu para 6%;
↗️A taxa de desistência no nosso grupo experimental caiu 3%.
Pão & chocolate
Os aromas mais "queridinhos" entre os participantes da pesquisa da USP
são uma especialidade de Ramilo Murillo. O padeiro e confeiteiro é o
vencedor do campeonato "Melhor Padeiro do Brasil", que é promovido pela
Bunge com parceria da Fipan, Feira Internacional de Panificação,
Confeitaria e Food Business. Ao g1, ele comentou sobre os dois aromas mais apontados pelo grupo do estudo.
O especialista nos ingredientes afirma que a capital paulista tem uma ligação forte com o pão, principalmente o "francês".
Em outros estados, em regiões como Norte ou Nordeste, segundo ele, as
memórias afetivas relacionadas aos momentos semelhantes aos do pão, como
o café da manhã ou reunião familiar, também podem estar relacionadas
com aromas de alimentos como mandioca, batata-doce e cuscuz de milho.
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Ramiro comenta que o alimento está na "nossa memória coletiva, enquanto
sociedade", e atravessa gerações. Em 2018, cientistas da UCL
(University College London) descobriram uma receita de pão de mais de 14
mil anos.
"Eu falo que o pão é anterior às religiões. Brinco que, quando Jesus
partilhou o pão, o pão já tinha pelo menos 4.000 anos. Não é à toa que o
cheirinho do pão no forno é um negócio que pega qualquer um. É raro
alguém falar que o cheiro de churrasco é ruim, mas falar que o cheirinho
de pão no forno é ruim é quase um sacrilégio."
Por que a Covid afeta o olfato?
Marco Aurélio Fornazieri é especialista da Associação Brasileira de
Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial (ABORL-CCF), professor de
otorrinolaringologia na Universidade Estadual de Londrina (UEL) e na
PUC-PR e pós-doutor em distúrbios do olfato e paladar pela Universidade
da Pensilvânia, nos Estados Unidos.
Segundo Fornazieri, o vírus da Covid afeta o olfato, inicialmente como
uma gripe, que pode entupir o nariz e levar a uma diminuição da chegada
das moléculas até o epitélio olfatório (responsável pela sensibilidade
olfativa).
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"A Covid tem uma atração especial pelas células neuronais, que são
responsáveis pelo olfato, e acaba destruindo essas células. Quanto mais
grave a Covid, provavelmente ela lesa mais as células basais, que são
células de regeneração do olfato. Isso pode levar a uma condição mais
crônica, a uma perda de olfato e, logo, a uma perda de paladar",
detalha.
Os neurônios olfativos, de acordo com o especialista, são mortos pelos
vírus, mas há uma renovação desses neurônios de 4 a 12 semanas. O
problema é quando as células que geram esses neurônios são afetadas
pelos vírus e morrem.
"Outras coisas que podem afetar também o olfato, além da Covid: um
trauma - você pode, por exemplo, bater a cabeça muito forte -, algumas
substâncias tóxicas, como cocaína, eventualmente venenos, tintura de
cabelo e outros vírus."
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